Esta crónica faz parte de um texto de sala para uma peça de teatro em cena. Mais do que uma prática competitiva, o futebol de aldeia ou de bairro era — e ainda é — um espaço de pertença, de vÃnculos familiares, de códigos de honra, resistência e rituais de celebração da vida.
“Bitoques e Campos da Bola” é uma evocação sensÃvel dessas vivências. Através de um olhar pessoal e nostálgico, convido-vos, neste texto, a mergulhar num tempo em que o jogo era apenas a face mais visÃvel de um encontro mais profundo: o encontro de um povo consigo mesmo.
Esta não é apenas uma memória de bola — é uma memória de gente como eu.
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Raramente — muito raramente — uma ida ao campo da bola, num domingo, se resumia a ver um jogo. Era um ritual. Um pequeno acontecimento que juntava gerações, alimentava laços e renovava uma espécie de fé comunitária que só o futebol de aldeia ainda sabe sustentar.
Mais do que futebol, celebrava-se ali uma pertença. Os clubes, por mais modestos que fossem, assumiam-se como motores sociais: formadores de miúdos e de valores, espaços de inclusão, gestos solidários. Eram lugares onde a autoestima de uma comunidade ganhava pernas — ou melhor, chuteiras — e corria atrás de uma bola como se fosse a última esperança de domingo.
Aquele tempo era, acima de tudo, um tempo de encontro. Nos domingos frios, as fogueiras surgiam aqui e ali, improvisadas com ramos secos e algum saber antigo. No outono, as castanhas assadas circulavam entre mãos calejadas, descascadas em roda, entre conversas pausadas e silêncios cúmplices. O bar, invariavelmente, era ponto de passagem obrigatória. O fumo dos cigarros era denso, cortava-se com as mãos. E embora ali só entrassem homens — os códigos eram outros — trazia-se para as mulheres um sumo ou qualquer outra lembrança discreta. Por trás da rudeza, havia delicadeza.
No bar não se falava de rivais. Bebia-se um copo, trocavam-se piadas, aproveitava-se o intervalo. Nos campos onde o bar era no exterior, um simples corte no bilhete bastava para regressar à bancada na segunda parte. Era uma confiança natural, uma espécie de pacto não escrito entre quem vinha de dentro e de fora.
Recordo bem, em Repeses, como o intervalo também era tempo de ir ao pinhal apanhar mÃscaros. Já se levava o saco no bolso, e os mais velhos, com sabedoria paciente, mostravam os caminhos e ensinavam a distinguir os bons dos venenosos. Em VildemoÃnhos, chegou-se a pendurar uma cortina a esconder o bar, quando a lei proibiu a venda de álcool nos recintos. A polÃcia fechava os olhos — ou piscava-os — de vez em quando.
À entrada, vendiam-se tremoços, amendoins, às vezes rebuçados. As tortas, essas, eram para levar para casa. Um luxo, quase uma extravagância. Os tempos não eram fáceis. Cada moeda tinha destino.
E depois vieram as bifanas. A corrida ao bar ganhou velocidade. Por vezes, perdia-se o recomeço do jogo só para saborear aquela sandes quente, com molho a pingar e cheiro a vitória — mesmo quando o resultado era adverso.
No Campo 1.º de Maio, no Fontelo, não havia bar. Era o futebol de formação. O ambiente era outro. Mas mesmo ali, havia quem escapasse discretamente ao “Malhado” para não quebrar o hábito.
Os campos da bola eram mais do que lugares de competição. Eram territórios de memória. E curiosamente — ou talvez não — era no bar que essa memória ganhava corpo. Porque, no fundo, era ali que se celebrava a verdadeira diversidade da comunidade: no gesto partilhado, na palavra solta, no copo dividido.
• E por aÃ? Que memórias guardam dos campos da bola da vossa terra?
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As fotos são da Gisela Figueiredo da apresentação, no passado sábado, em Repeses.
Ficha ArtÃstica:
A partir do livro de R.M.Ribeiro “Dos Bitoques e dos Campos de Bola”
Dramaturgia, Encenação e Espaço Cénico: Cristóvão Cunha
Interpretação: José Batista e José Manuel Figueiredo
Design gráfico e Comunicação: Mariana Duarte
Assistência Encenação: Cristina Ferrão
Assistência de Produção: Bárbara Marques
Direção ArtÃstica Rituais para o Futuro II – Sónia Barbosa
Consultores na pesquisa de clubes locais e textos: Carlos Eduardo Esteves e VÃtor Santos
Consultoria ArtÃstica e acompanhamento ensaios: Palco de Argumentos
Projeto financiado pelo Eixo Cultura – MunicÃpio de Viseu
Apoios Rituais para o Futuro II: Núcleo de Animação Cultural de Oliveirinha, Junta de Freguesia de Repeses e São Salvador, Junta de Freguesia de Silgueiros, Junta de freguesia de Bodiosa, Teatro Regional da Serra de Montemuro, Istituto Italiano di Cultura, Embaixada d’Italia a Lisbonna, Cometa Off – Roma, Cinema Teatro Fellini – Latina, Instituto do Emprego e Formação Profissional, União Europeia – Fundo Social Europeu, Instituto Politécnico de Viseu – Escola Superior de Educação, Jornal do Centro, Associação Recretiva e Cultural de Santarinho, Atlético Clube de Travanca de Bodiosa, Clube de Futebol de Repeses, Lusitano, Futebol Clube de Vil de Moinhos, GCRS – Silgueiros, Contraponto.