À conversa com Vítor Santos, que nos fala de desporto…
Iniciar desportivamente uma criança no futebol, não significa ensiná-la a chutar, a fazer golos e a correr. Significa incentivá-la a saber trabalhar em equipa, ter disciplina, conhecer as regras do jogo e respeitá-las. Além de ensinar conceitos sobre o jogo, a prática do futebol prepara-a para a vida.
Vítor Santos tem um percurso ligado ao desporto e nos últimos anos tem-se dedicado na promoção da ética desportiva. Os seus trabalhos têm ganho prémios e distinções a nível nacional e tem percorrido o país a fazer comunicações sobre a participação dos pais na prática desportiva dos filhos.
Embaixador do Plano Nacional de Ética no
Desporto e assume que “tenho o compromisso de reportar todas as situações que
sejam verídicas e coloquem em causa a integridade desportiva e os direitos das
crianças”.
Falta cultura desportiva em Portugal?
Sem dúvida nenhuma. Portugal não tem
cultura, nem educação desportiva. Vive-se muito os clubes – os 3 grandes, e
esvazia-se todo o resto. Infelizmente, a única cultura existente é a de “ganhar
a todo o custo” que está cada vez mais presente nessa sociedade. Este tipo de
situações leva a comportamentos antiéticos e violentos, afetando negativamente
o desenvolvimento desportivo.
O
futebol português tem sido fértil em maus exemplos?
O futebol é a
atividade mais mediatizada e escrutinada do mundo. Como qualquer outra
atividade tem gente boa e má. O que se passa em Portugal, na minha opinião, é
que não evoluímos em termos desportivos. A própria imprensa desportiva
não tem a qualidade de outros tempos.
As
cenas que vimos no Porto – Sporting são exceções?
O clima da
competição profissional em Portugal é de guerra. Durante a semana assistimos a
personagens surrealistas, idolatra-se o diretor de comunicação, um líder de
claque… tudo que acontece no jogo acaba por ser reflexo do que o rodeia. É
muito fácil o confronto acontecer. Só se remedeia com fortes sanções
monetárias.
Mas
não foi caso único?
Não foi e nem será.
Na iniciação e depois na formação ainda se exige á criança e ao jovem que sejam
“chico-espertos”, para ludibriar o árbitro. São premiados estes gestos na
formação. Estes atletas vão ser sempre um mau agente desportivo, um mau adepto,
porque na sua vivência da prática desportiva foi-lhe incutido que o crime
compensa. Depois também não entendo como os treinadores permitem tanta gente
nos bancos. Eu queria sempre o menor número de pessoas. Só mesmo as
indispensáveis. Eu assumia-me como o líder e por isso a única voz de comando e
não queria ruído. Aprendi que era assim e assim partilho esse ensinamento. Hoje
os treinadores deixam toda a gente falar, dar orientações, fazer ruído… O foco
não é o processo mas o resultado! Devia ser precisamente o contrário.
E
em particular no Distrito de Viseu?
Estamos a sair de
dois anos atípicos e só mais adiante podemos ter dados concretos sobre o
impacto que a pandemia teve no desporto. No entanto o futebol, que é o que mais
acompanho, tem tido competição regular nos últimos meses. A verdade é que o
desporto distrital é pouco valorizado e todos os clubes parecem querer fugir
para os nacionais. Não reconhecem a força que o desporto tem no contexto
regional e se os clubes se organizarem em termos de ética desportiva vão fazer
do futebol um encontro de beirões por estes campos todos. A dinâmica do futebol
distrital é sobrevalorizada em termos desportivos e mesmo sociais e económicos.
A
distrital é preferível a um nacional?
Depende do clube.
Na maioria dos casos sim. Em termos desportivos e económicos. Existe o estigma
de “ser distrital” quando as competições intermédias são muito menos atrativas
e vazias de público. A liga 3, por exemplo, é jogada a horas que afasta o
público do jogo. A médio e longo prazo o jogar para a TV vai custar caro a
esses clubes que começam a perder adeptos. O Campeonato de Portugal não gera
receitas e o quadro competitivo é injusto.
A rivalidade
saudável e o bem-receber o adversário são fatores decisivos e teríamos meia
dezena de adeptos visitantes a cada domingo á tarde a passear e a ir ver o
jogo. Mas deixar a competição para dentro do campo. Fora é o apoio positivo. As
localidades ganhavam vida, economia, promoção dos artigos tradicionais e
modernidade. Agora ninguém se desloca a uma localidade para ver um jogo e ser
recebido de forma hostil e agressiva!
E
em termos de formação?
A nossa situação
não é diferente da do resto do país. Continuamos semanalmente a ver jogos a
serem interrompidos por causa da violência nas bancadas. O foco passa do jogo
para as bancadas onde crianças e jovens observam os seus pais a agredirem-se! A
linguagem usada continua a ser a palavra agressiva, o insulto fácil quer para
as crianças, árbitros e treinadores (ambos maioritariamente jovens). Crianças
de 11 anos insultadas no desporto é uma realidade inconcebível e criminosa.
Jovens árbitros a serem alvo de violência verbal igualmente. É tudo muito
triste. É tudo muito triste.
Continuam a
haver treinadores que não têm perfil, nem conduta para o serem. Não sei o que
os prende porque não gostam de desporto e porque os clubes os têm! Os
treinadores de jovens são especiais porque terão de ser pessoas disponíveis
para trabalhar a longo prazo e devem inspirar os jovens mantendo-os motivados
para a prática desportiva e assegurando que a sua participação seja realizada
essencialmente por razões intrínsecas. Não é o que acontece.
Uma publicação sua nas redes sociais de um vídeo de futebol
infantil, no Fontelo, deu a conhecer a quem não frequenta este espaço o muito
do ambiente que é vivido pelas crianças na sua prática desportiva. Passaram-se
algumas semanas sobre tal incidente e que foi feito?
A verdade é que o
clube em causa tomou medidas e reforçou junto da sua comunidade qual o tipo de
comportamentos que aceitam. Quanto a outras instituições penso que nada foi
feito. Todas reconhecem o problema, mas que é difícil fiscalizar, punir, etc.
Quando muitas vezes a presença destas instituições nos campos desportivos onde
as crianças praticam desporto era já por si dissuasora.
No entanto também
falta interromper os jogos e colocar as crianças de braços cruzados em silêncio
a olharem para as bancadas. O durante é muito importante.
É no âmbito do
envolvimento parental na prática desportiva, que tenho realizado diversas
comunicações em clubes e associações para pais, treinadores e dirigentes.
Desde
o lançamento do livro Educar o Sonho: ética e envolvimento parental na prática
desportiva em 2018 até aos dias de hoje o que mudou?
Infelizmente as
mudanças não são instantâneas. Os clubes melhoraram muito na sua organização e
comunicação aos pais sobre o processo de formação. No entanto ainda existe
muito trabalho a fazer de forma a que possamos encarar o jogo pelo jogo e em
que o adversário ou o árbitro não sejam olhados como inimigos. O processo de
certificação e a bandeira da ética trouxeram exigência aos clubes. Falta
aplicar na prática a teoria toda. Mas muito já se faz. Esperemos que as
Autarquias nos seus contratos programas também o façam. É muito importante e
têm um papel de responsabilidade junto da comunidade. A melhor imagem é que
atuamos e não fazer de conta que o problema não existe connosco.
O Vítor
tem partilhado vários exemplos negativos e positivos. Tem feedback desse
trabalho?
Sim. Hoje recebo
muita informação de quase todo o lado. Tenho a obrigação de a saber interpretar
e selecionar antes de a partilhar. É o que faço. Quando aceitei o compromisso
de ser Embaixador do PNED sabia que tinha a obrigação de reportar e denunciar
todos os comportamentos de que tenha conhecimento e sejam veridicamente
provados. A receção ao meu trabalho é excelente. Se por cá ainda existe
muito o estigma de ser “da casa”, quando percorro o país, regresso sempre de
coração cheio e de que valeu a pena a partilha. Tenho bastantes comunicações já
agendadas pelo país.
É fundamental. Não
faz sentido ser de outro jeito. Mas fora do espaço desportivo. Quando saem as
convocatórias por exemplo. No treino e jogo os pais são apoiantes. Nada mais.
Quando ultrapassam esta função e que já é muito importante, estão a ser os
protagonistas e não o devem ser. Têm de confiar no clube que escolheram. Por
sua vez os clubes têm de ser responsabilizados pelos treinadores que escolhem e
a quem os pais confiam os filhos. O comportamento de um treinador de crianças é
muito mais de formador que de Mister.
Os atletas em campo têm de
tomar decisões. Vão errar? Vão. Mas é assim que aprendem e os treinadores estão
lá para corrigir no momento certo para o fazer. O que se pretende não é
eliminar completamente os erros – tal não é possível – mas diminuir
progressivamente o seu número. Não façam é das crianças totós. Os pais e
treinadores têm de dar mais autonomia aos atletas nestas idades. Os clubes têm de estar preparados para esta realidade da
participação dos pais.
E
é importante?
Decisivo. Ninguém
nasce ensinado para ser pai de um atleta. A experiência diz-nos que tudo começa
de uma forma lúdica e com o tempo o envolvimento começa a ser tão grande que
toda a rotina familiar vai ser gerida em função dos horários de treinos e jogos
do filho. A família abdica de muito do seu tempo para acompanhar o filho. Daí a
irritação, muitas vezes, dos pais quando os filhos jogam poucos minutos. Temos
de dar tempo a todos os intervenientes de assimilarem este processo.
Porque se começa muito cedo?
A prática
desportiva do futebol chega a ser iniciada antes mesmo de haver contacto com a
escola. As crianças adoram desporto, jogar, brincar e divertem-se antes mesmo
de conhecer regras e atitudes que se devem ter em campo. Iniciar
desportivamente uma criança no futebol, não significa ensiná-la a chutar, a
fazer golos e a correr. Significa incentivá-la a saber trabalhar em equipa, ter
disciplina, conhecer as regras do jogo e respeitá-las. Além de ensinar
conceitos sobre o jogo, a prática do futebol prepara-a para a vida. Tudo leva o
seu tempo. Não se pode é confundir prática desportiva com competição de alto
rendimento. É o que acontece: o transfer
do sénior profissional para a criança. É comum ouvir num jogo de crianças
arbitrado por um(a) jovem: “ainda esta semana no jogo da liga dos campeões o
árbitro roubou”. Isto faz algum sentido?! Diz muito sobre quem tem este tipo de
afirmações.
Por isso é
importante tirar o peso da competição para que todos cresçam em harmonia.
O cartão branco tem sido bem utilizado?
As boas práticas
são sempre de valorizar. O cartão é uma ferramenta pedagógica e serve para
promover essas boas práticas. Eu tenho lido que tem havido uma banalização do
cartão branco – algo que já tínhamos discutido em alguns fóruns de decisão,
quando se fala de retirar uma criança de campo para as equipas jogarem em
igualdade numérica. Eu entendo e acho que esta não é a melhor forma de motivar
as crianças. Mas temos de perceber porque acontece e que podemos fazer. E
podemos começar por retirar a formalidade à competição. Em vez de retirarmos
crianças, passamos uma, duas ou mais para a outra equipa e damos tempo de jogo
e oportunidade a mais atletas de jogarem. Criamos situações novas às crianças
tirando-as da sua zona de conforto que é importante para o seu crescimento.
Depois vamos ver como lidam os treinadores resultadistas e os pais obcecados!!!
Em Inglaterra tiveram a iniciativa Silence
is Gold e a reação dos treinadores resultadistas foi vergonhosa. Os bons
treinadores adaptam-se a todas as situações e vão sempre recolher material para
o seu trabalho.
Enquanto treinador o que mais o marcou?
As crianças e os
jovens. São amizades que se criam e ficam para a vida. Os menos culpados de
tudo e os que são usados pelos adultos para as suas causas e objetivos. No
desporto criam-se muitas amizades.
Pela negativa, sem
dúvida, que os comportamentos de alguns treinadores da formação e dos
familiares de atletas. No mesmo clube vi pai/treinador a agredir o treinador do
filho!
Mais do que nunca.
A responsabilidade também aumentou. Não basta falar ou escrever umas frases
bonitas. Temos de ser coerentes e apresentar soluções. A verdade é que tenho
momentos que sinto que vou em contramão. Não entendo como as pessoas têm tantas
desculpas para o indesculpável. Começam por dar os parabéns pelo trabalho
e depois vem sempre o, “mas”.
Projetos?
Tenho uma edição
ampliada e atualizada de Educar o Sonho pronta. Durante estes três anos adquiri
muito mais conhecimento e informação. Mas não creio que seja possível, sem um
parceiro institucional, pelo que vou continuar a comunicar para quem me convida
e a escrever para vós.
Fonte: https://www.ruadireita.pt/ultima-hora/a-conversa-com-vitor-santos-que-nos-fala-de-desporto-39097.html
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