A árbitra de 14 anos que resiste ao frio e à chuva de insultos
A chuva é tão intensa que praticamente apaga o castelo que
habitualmente se vê de forma nítida dali do Campo das Lages. Mas não há
problema. Porque esta não é uma história de princesas. E aquelas muralhas são
apenas apontamento no cenário de mais um domingo frio e chuvoso em que Lara
Santos saiu de casa cedo para vestir calções, t-shirt e uma coragem que a nós
nos gela, para arbitrar um jogo de sub-10.
«Não fui feita para jogar futebol»
«Tem
de ser uma pessoa muito especial»
Quais castelos, quais quê! Bárbaros só mesmo alguns pais/adeptos
como os que na semana anterior tinham tentado saltar a vedação para ir bater no
jovem árbitro, enquanto mandavam «mamar» a assistente. Mas essa assistente, a
Lara, pelas contas feitas aos 14 anos de vida, já nasceu bem dentro do século
XXI. Nem precisa de armadura para se defender de bocas vindas da Idade Média.
«É uma pressão que tem coisas boas e outras
negativas. Também temos de saber lidar com as coisas más», desvaloriza em
conversa com A BOLA.
«O mais difícil é mesmo o que vem da
bancada, mas eu sei que vão sempre insultar, mesmo que façamos o nosso trabalho
bem», enaltece, já equipada, minutos antes de sair para o campo para dirigir
mais um jogo.
De resto, mais do que uma armadura, talvez
o que fizesse falta fosse um impermeável. Ou uma camisola mais quente que
fosse. Mas até isso a jovem árbitra relativiza.
«Estes dias de frio e muita chuva são duros
em termos psicológicos. É difícil estar ali tanto tempo ao frio e à chuva, e
continuar a prestar atenção ao jogo. Há duas semanas, estive duas horas
seguidas à chuva, a apitar dois jogos, com a roupa toda molhada no corpo. Nunca
senti tanto frio na minha vida. E isso custa, mas é o menos», desvaloriza.
Afinal, apesar de ser pouco habitual ver
árbitras tão jovens, foi Lara que quis seguir esse caminho. E não será a chuva
e o frio a travarem-na. «Claro que era mais fácil ficar em casa, mas eu gosto
disto e quero chegar a árbitra profissional, se possível. Tenho de continuar a
aprender e evoluir», receita.
Na verdade, a ideia da arbitragem não
surgiu espontaneamente na cabeça da menina de Marvão, concelho de Cantanhede.
Foi quase um desafio lançado por amigos do pai que são árbitros e conheciam o
gosto de Lara pelo futebol. Sim, sabemos a questão que está a pensar: mas
porquê arbitrar e não jogar? Também a fizemos.
«Eu nunca joguei futebol a sério. Gosto,
mas jogava na escola e percebi logo que não fui feita para jogar», atira,
sorridente. «Não tinha jeito e por isso não me cativava. Então, por que não
apitar? É que sem árbitros, o que seria dos jogadores?», acrescenta.
Passaram quase cinco meses desde que subiu
pela primeira vez a um campo como árbitra, depois de ter concluído a formação
teórica com 13 anos e ter esperado quase um ano para ter a idade mínima para
apitar um jogo. Mas as emoções vividas naquela manhã de outubro continuam bem
vivas na memória.
«O meu primeiro jogo foi uma coisa que eu
não estava mesmo à espera. Foi uma explosão de sentimentos que me veio quando
entrei no campo. Senti logo aquela pressão que existe sobre os árbitros e com a
qual é difícil de lidar. Mas agora já estou mais habituada», assegura,
partilhando algumas das dificuldades sentidas.
«Os primeiros jogos foram muito difíceis
para mim. Porque eu nunca sabia o que me esperava. É mesmo difícil estar lá
dentro. Por vezes estamos no campo, sabemos o que temos de fazer, conhecemos as
regras, mas a pressão parece que nos faz esquecer de tudo. Bloqueamos! Isso
aconteceu-me nos primeiros jogos. Agora estou a aprender a lidar melhor com
essa pressão», resume a jovem.
Quem também sente as “dores de crescimento”
de Lara é o pai, Eric Santos. Mas se a filha se mantém imperturbável na
intenção de continuar na arbitragem, o pai… nem tanto. «De certa maneira, sou o
responsável, sim. Mas já me arrependi. Logo nos primeiros jogos arrependi-me um
bocado de a ter incentivado. Mas é o que ela diz: “pai, agora vou”. Ela agarrou
o bichinho e ninguém a vai parar», nota, sem esconder um sorriso orgulhoso que
não é abalado nem pelos episódios a que já assistiu em jogos dirigidos pela filha.
«É difícil lidar com as bancadas. Por causa
dos pais, que são injustos. Mas acho que até é mais difícil para mim do que
para ela», sublinha. «Na semana passada, houve um pai que quis entrar no campo,
trepou a rede e só não conseguiu chegar ao árbitro porque a rede era alta. Ela
estava a fazer de fiscal de linha, insultaram-na, mandaram uma miúda de 14 anos
“ir mamar”! E eu estava ali caladinho a assistir. Mas às vezes custa», reforça,
não escondendo alguma revolta.
O sentimento predominante quando vê a filha
em campo, contudo, é bem distinto. «Sinto muito orgulho dela, até pela idade
que tem. Não se veem muitas miúdas de 14 anos já com este tipo de
responsabilidade», diz, no preciso momento em que, atrás de si, Lara acaba de
assinalar um penálti. «Ah, não vi!», atira sorridente enquanto espreita por
cima do ombro.
E apesar do arrependimento que confessara
instantes antes, Eric não tem dúvidas de que esta é uma atividade que, além de
ser do agrado da filha, lhe dá ferramentas que lhe são úteis no dia-a-dia.
«Isto não é só futebol. A arbitragem traz-lhe coisas muito importantes. Por
exemplo, ajudá-la a manter o foco. Ela tinha essa dificuldade – e ainda tem um
bocado – de estar concentrada durante muito tempo. E traz-lhe também
responsabilidade», reconhece.
Mas não haveria outras formas de fomentar
isso na educação da filha? «Há hobbies mais fáceis, sim. Mas este dá luta, como
ela diz. E ela gosta, que é o mais importante», reage de pronto.
Quem também não esconde o orgulho pelo
exemplo dado pela Lara é Roberto Rodrigues, presidente do Conselho de
Arbitragem da Associação de Futebol de Coimbra, que continua a espantar-se com
a força de vontade da jovem juíza.
«Ela acabou o curso quando ainda faltava um
ano para poder apitar. E na verdade, pensávamos que tirava a parte teórica e
depois não vinha mais. Mas ela fez pressão para vir, e nós achámos isso muito
interessante e nunca mais a largámos. Porque há muito poucos casos de jovens de
tão tenra idade queiram vir para a arbitragem», explica.
E até mais difícil do que recrutar e formar
árbitros é mantê-los em atividade, acrescenta, sublinhando o exemplo de
superação que Lara está a mostrar naquele momento em que temos de nos abrigar
num balneário para conversar sem ficarmos ensopados.
«Está a chover torrencialmente, está muito
frio, e esta miúda de 14 anos sai do quentinho e do conforto do lar para vir
para um campo de futebol arbitrar. É preciso ser uma pessoa muito especial!»,
aponta. «Por isso, eu digo que precisamos de mais Laras. A arbitragem necessita
de ter mais meninas que queiram ser árbitras porque o futebol feminino vai
explodir na próxima década, as mulheres vão dominar, e precisamos que a
arbitragem tenha recursos humanos para responder a esse crescimento»,
acrescenta.
Sem muito tempo para se preocupar ainda com
esse futuro que também prevê, e já com o jogo terminado, Lara pede ao pai para
não a distrair no momento de preencher o boletim de jogo. E só depois disso é
que vai começar a pensar no teste de francês do 9.º ano para o qual vai estudar
à tarde.
«Mas agora ainda demoro um bocado a acalmar
dos nervos do jogo. Ainda me estou a habituar», atira, sempre sorridente, na
despedida.
Cumprido o dever, é hora de voltar a ser
uma normal miúda de 14 anos. No próximo fim de semana há mais.
08.03.2024